Budismo, Mindfulness e “McMindfulness”
Imaginemos que as empresas do nosso país construíam capelas no seu interior. Provavelmente, aplaudiríamos o seu generoso ato por providenciarem um espaço para a prática religiosa de muitos dos seus trabalhadores.
Nuno Peixinho é investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e da Universidade de Coimbra, dirigente do Sindicato dos Professores da Região Centro/FENPROF, e membro da Wild Flower Zen Sangha.
Imaginemos que, num espírito interreligioso, as transformavam em templos multiconfessionais e as denominavam de salas de oração. Aplaudiríamos mais. Imaginemos agora que em vez de capelães das diversas confissões colocariam lá um treinador/guia de oração secular, dirigida para a redução do stress e para a aceitação do mundo tal como ele é. Juntemos-lhe ainda parcos salários e más condições de trabalho nessas mesmas empresas que muito investiram nesta nova espiritualidade secular para os seus trabalhadores e pouco ou nada investem nas condições materiais destes. De sobrolho franzido, pararíamos de aplaudir. Contudo, fazendo (mau) uso do mindfulness, este cenário vai tornando-se real por este mundo fora.
A prática de mindfulness tem vindo a crescer. O anglicismo veio para ficar, mas é também frequente traduzir-se por atenção plena ou atenção vigilante. O ensinamento mais detalhado do Buda sobre a prática da atenção plena encontra-se no Satipatthana Sutta. Nele, Buda diz:
Este é o caminho direto para a purificação dos seres, para a superação da tristeza e da lamentação, para o desaparecimento da dor e da angústia, para alcançar o caminho verdadeiro para a realização do Nibbana, isto é, os quatro fundamentos da atenção plena. (1)
Segue-se, depois, a descrição detalhada desses quatro fundamentos. Como não querer praticar esse caminho!?
Não sendo o mindfulness uma prática exclusivamente budista, foi o budismo quem mais a sistematizou e propagou, muito em particular o movimento Vipassana birmanês, dentro da tradição do Budismo Theravada. Porém, o mindfulness de que hoje tanto ouvimos falar deriva daquele que nasceu em 1979, pela mão do Doutor Kabat-Zinn, com a criação do programa de redução do stresse baseado em mindfulness (MBSR). Este mindfulness, supostamente secularizado, foi-se desenvolvendo como uma terapia para redução do stress, para lidar com dor crónica e para melhorar o bem-estar.
Não obstante, este novo mindfulness tem vindo a dividir os budistas. Não apenas porque, na prática, se auto-legitima precisamente por ser uma prática budista enquanto simultaneamente o nega ser, levantando muitas outras questões, mas, e sobretudo, por um novo uso que dele se tem vindo a fazer. O título da obra de Ronald Purser, “McMindfulness: como o mindfulness se tornou na nova espiritualidade capitalista,” (2) resume bem este novo problema. Quando grandes empresas, conhecidas pelas más condições de trabalho que dão aos seus trabalhadores, investem em ações de formação e em espaços de bem-estar para aumentar a produtividade e diminuir o sentimento reivindicativo, fazendo uso de uma prática que na verdade é budista, amputando-a da sua componente moral e tornando-a num treino de quietismo e boa-disposição ao serviço do lucro não redistribuído… nem precisamos de invocar a ação correta do Nobre Caminho Óctuplo do budismo, que este novo mindfulness ignora, para reconhecer que algo está profundamente errado.
10/03/2023
A equipa assume a gestão editorial de Terra da Fraternidade, mas os textos de reflexão vinculam apenas quem os assina.
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(1) Satipatthana Sutta, in Majjhima Nikaya, 10: “Discurso sobre os Fundamentos da Atenção Plena.”
(2) Ronald Purser, McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality (Londres: Repeater, 2019).